GAZETA DO POVO - 07/11/08 |
Mario Reis é apontado como um inovador no canto brasileiro ao
“emprestar a ele uma bossa que ainda não existia”, afirma o jornalista
e escritor Ruy Castro. A novidade foi, na década de 1920, também uma
ousadia: no lugar do vozeirão impostado, interpretações mais contidas,
naturais, quase faladas, e que rompiam com os paradigmas criados, na
época, por cantores como Vicente Celestino e Francisco Alves. Até mais
importante que isso, porém, foi sua capacidade de aliar, de forma até
então inédita, duas faces tão distintas quanto características do Rio
de Janeiro do início do século 20: o “refinamento” europeizado e branco
da alta sociedade burguesa e a pujança do samba negro nascido e criado
nos morros cariocas. Mistura que deu origem, muitos anos depois, à
bossa nova. De uma maneira ou outra o intérprete ajudou a emprestar ao
samba uma condição social até então negada ao ritmo – vale lembrar que
a polícia constantemente era chamada a dispersar grupo de sambistas,
cujas canções estimulavam passos tidos como excessivamente sensuais.
Herdeiro milionário, Reis é dos primeiros de sua classe a legitimar o
gênero criado por negros na periferia pobre do Rio.
Mario da
Silveira Meirelles Reis foi um legítimo representante da aristocracia
carioca. Nascido em 31 de dezembro de 1907, foi o segundo filho do
comerciante Raul Meirelles Reis e de Alice da Silveira Reis, irmã de
Guilherme da Silveira, presidente da Fábrica Bangu de Tecidos, um dos
destaques da indústria brasileira nos anos de 1920.
Com
ótima condição financeira, teve vida confortável na infância e na
adolescência, conciliando os estudos com a prática de esportes. Em
1924, iniciou os estudos de música, com o violonista popular Carlos
Lentini.
Olha o breque
A morte do
pai em um acidente de trem, em 1925, mudou a vida do futuro artista,
então com 17 anos. Ele e o irmão mais velho, João, foram informalmente
adotados pela família da mãe. O tio, Guilherme da Silveira, foi uma
espécie de novo pai para o jovem órfão. Em 1926, influenciado pelo tio,
Mario ingressou na Faculdade de Direito do Distrito Federal, mas
continuou estudando violão. Foi o jornalista Brício de Abreu quem
aconselhou o jovem a procurar um novo professor, já que Lentini não
poderia mais desempenhar a função devido a outros compromissos
profissionais. Sugeriu Sinhô, um dos pioneiros do samba carioca. “Sinhô
ficou fascinado com as habilidades vocais do Mario”, contou Brício em
uma entrevista ao Jornal da Tarde, em 1971. O letrista Carlos Rennó
também garante que o que mais chamou a atenção de Sinhô em Reis foi a
forma de interpretar. “Com ritmo, malícia e maleabilidade – a adequação
era perfeita”, diz Rennó.
Apadrinhado por Sinhô, Mario
Reis revolucionou a música brasileira ao fazer interpretações de um
jeito distinto do tom impostado e solene adotado pelos cantores de
samba. “O que o diferenciava de seus contemporâneos era sua maneira
intimista, sua voz suave, sem o vibrato típico dos artistas de sua
época”, afirma o pesquisador musical Luiz Américo. “Ele fundou um novo
estilo, com uma emissão vocal reduzida e a capacidade de falar a letra
dentro da melodia.” Segundo o historiador e professor de música Evandro
Pichirilli, a interação que Reis promovia entre a divisão das sílabas e
a rítmica do samba – resultando no famoso “breque” – era outro ponto
importante em sua inovadora forma de interpretação.
A
tecnologia também contribuiu para que Reis fizesse tanto sucesso. O
surgimento do sistema elétrico de gravações no Brasil, em 1927, trouxe
uma grande novidade: o uso do microfone. “No início dos anos de 1920,
os discos eram registrados por meio do autofone, um gramofone ao
contrário”, explica o cantor e compositor Carlos Navas, idealizador do
show Ases do Samba – baseado em show homônimo realizado em 1931 –
em tributo a Mario e a Francisco Alves (veja boxe Parceria
inesquecível). “Nesse processo, os cantores precisavam ter uma emissão
de voz potente para pressionar a cera que registrava os sons”, diz.
“Com o novo modelo, a voz era captada de maneira mais sensível,
possibilitando que o timbre fosse ouvido claramente, e o volume,
dosado, propiciando maior variedade à interpretação. Mario foi quem
melhor se adaptou a esse formato e, por isso, é considerado o primeiro
artista ‘microfônico’ da canção brasileira.”
Começo, meio e fim
O primeiro
disco de Mario Reis foi lançado em agosto de 1928, tendo Sinhô como seu
grande padrinho. Apresentou o novato à gravadora Odeon, forneceu as
duas músicas do compacto De Que Vale a Nota sem o Carinho da Mulher? e
Carinhos de Vovô, e ainda deu a canja ao violão. A “bolachinha” vendeu
bem. Surgia, então, um novo talento: “O simpático amador canta a
primeira peça de modo muito original, dando-lhe interpretação digna de
nota”, escreveu o crítico Cruz Cordeiro na revista Phono-Arte de 30 de
agosto daquele ano. O cantor continuou gravando músicas de Sinhô nos
álbuns seguintes. Duas delas, Jura e Gosto Que Me Enrosco, ambas de
1928, renderam-lhe grande êxito. “O disco bateu recordes de vendagem”,
conta Rennó. “Mario passava a disputar com Francisco Alves e Vicente
Celestino a liderança entre os ídolos populares do cenário musical.” O
sucesso de suas canções fez com que ele abraçasse a carreira artística,
mesmo após a formatura em direito, em 1930. Não deu outra: ganhou o
apelido de doutor do samba.
Ainda no ano em que concluiu a
faculdade, Mario começou a gravar duetos com o próprio Francisco Alves,
um dos grandes representantes do chamado bel-canto (leia-se, o famoso
vozeirão). A parceria foi um acontecimento para a música nacional. “Até
1933, os dois gravaram juntos, em duetos históricos”, explica Rennó.
“Foram 12 discos que tiveram papel importante no processo de
cristalização do samba moderno – nascido no Estácio e posterior ao
feito por Sinhô, falecido em 1930.” Entre as canções que lançaram, e
que se tornaram hits, aparecem Marchinha do Amor (1932), composta por
Lamartine Babo, e Fita Amarela (1933), de Noel Rosa. De tão
bem-sucedidas, as gravações levaram à criação do show Ases do Samba,
versão original de 1931, apresentado com sucesso em excursões por todo
o Brasil, chegando à Argentina. A turnê era estelar: participaram dela
Noel Rosa e Carmem Miranda – com quem Mario Reis fez par romântico no
filme Estudantes, de 1935, um dos três em que atuou. Ainda nesse
período, foi contratado pela Rádio Mayrink Veiga, na qual ficou
conhecido como bacharel do samba. Em 1936, Cadê Mimi foi o único
sucesso em sete discos lançados por ele.
Chegava ao fim a
carreira de músico. “Foi aí [no mesmo ano de 1936] que Reis optou por
deixar de lado a música. Ele dizia que achava que já tinha feito tudo o
que podia”, diz Carlos Rennó na biografia presente no site oficial do
cantor (www2.uol.com.br/marioreis).
O adeus
Depois
de pendurar as chuteiras, Mario foi convidado pela primeira-dama, Darcy
Vargas – de quem tinha se aproximado por conta do cargo de oficial de
gabinete na prefeitura do Rio de Janeiro, uma de suas ocupações fora
dos negócios da família –, a participar do musical, produzido por ela,
Joujoux e Balangandans, realizado no Teatro Municipal carioca em 1939.
Em plena ditadura do Estado Novo, o intérprete não viu clima político
para recusar à convocatória. Um segundo retorno foi ensaiado no início
dos anos de 1950, quando lançou um álbum pela gravadora Continental com
seis músicas, Jura, Sabiá, Fala Meu Louro, Gosto Que Me Enrosco, Ora
Vejam Só e A Favela Vai Abaixo. Para o Carnaval de 1952, Mario Reis
gravou Flor Tropical, de Ary Barroso, e Saudade do Samba, de Paulo
Soledade e Fernando Lobo, pela mesma gravadora.
Após mais um
hiato de dez anos, voltou pela terceira vez, em 1961, agora pela Odeon,
que lançou o LP Mario Reis Canta Suas Criações em Hi-Fi. O último
disco, no entanto, foi em 1971 e levou seu nome. No repertório, além
dos compositores que sempre gravou (Sinhô, Noel Rosa, Lamartine Babo,
entre outros), está uma música criada especialmente para ele por um fã
muito especial: Chico Buarque, que deu ao ídolo outro clássico, A
Banda. Ainda no mesmo ano, uma canção a ser lançada em um compacto,
Bolsa de Amores, também de Chico, foi censurada. No seu lugar, Mario
fez questão de deixar uma faixa em branco. “Recuso-me a colocar outra
em seu lugar”, afirmou o cantor numa entrevista ao Jornal do Brasil na
ocasião. Para lançar o LP, Mario quebrou o jejum de quatro décadas
longe dos palcos, apresentando-se em três dias (2 a 4 de setembro de
1971) no hotel Copacabana Palace, onde morava sozinho desde 1957.
Segundo registra o site Dicionário Cravo Albin de Música Popular
Brasileira (www.dicionariompb.com.br),
o show teve “casa lotada, tendo sido aplaudido de pé por mais de dez
minutos”. Ao mundo, o cantor carioca disse adeus em 5 de outubro de
1981, por complicações surgidas em decorrência de um aneurisma.
Os
estudiosos identificam Mario Reis como um dos fundadores do moderno
canto brasileiro, com originalidade e criatividade. Ele seria uma ponte
entre Noel Rosa, que na década de 1920 gravou seus próprios sambas com
uma voz pequena, porém afinada e característica, e João Gilberto, que
no final da década de 1950 irrompeu no cenário com Chega de Saudade,
marco inaugural da Bossa Nova, com uma interpretação até considerada
revolucionária.